Se no discurso teórico-pedagógico já superamos a dúvida sobre alfabetizar ou não na pré-escola, ainda temos muito que questionar as práticas cotidianas de alfabetização utilizadas com crianças pequenas, incluindo sua relação com as outras linguagens. No que diz respeito às práticas pedagógicas, sabemos que as mudanças acontecem de maneira lenta. Pela falta de uma teoria capaz de orientar a compreensão do processo educativo em sua complexidade, acabam-se reproduzindo práticas tradicionais de caráter naturalizante, o que, por sua vez, limita o pensar e o agir pedagógicos do professor a uma concepção reducionista e superficial do desenvolvimento humano.
O fenômeno da alfabetização sempre esteve correlacionado à preocupação de definições de métodos, o que proporcionou uma exacerbada padronização das aprendizagens, negando as singularidades e as heterogeneidades das crianças e desconsiderando o fim social da escrita e da leitura. Pode-se dizer que as práticas dos professores alfabetizadores eram reforçadas por concepções advindas de diferentes métodos. Em oposição a esse contexto, a partir da década de 1980, passamos a contar com um grande número de pesquisas, fomentadoras de um amplo debate sobre o tema da alfabetização.
Muitas das análises apontam que, além da definição de um método, é importante compreendermos como a criança constrói seus conceitos sobre a língua escrita. A maior importância atribuída aos processos de aprendizagem das crianças abre caminho para questionarmos as concepções de alfabetização dos professores que são determinantes de seu pensar e agir pedagógicos. Podemos dizer que, ao questionar como as crianças aprendem, intrinsecamente ocorre o seguinte questionamento: como os professores ensinam?
Tal perspectiva esclarece-nos que a alfabetização é um processo complexo e que não tem idade para acontecer, sobretudo se entendemos que a alfabetização não se dá simplesmente pelo treino das habilidades de "decodificação" e "codificação" de códigos. Minha visão de alfabetização considera a escrita e a leitura como instrumento cultural complexo e interligado às diversas experiências sociais e culturais que circunscrevem o mundo infantil. Falo do escrever como registrar vivências, expressar sentimentos e emoções, ou seja, como comunicação.
Na educação infantil, as práticas pedagógicas precisam realizar uma conexão entre o processo de alfabetização das crianças e o mundo real, construir uma concepção de ensinar a ler e a escrever no próprio contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, inserindo as crianças em um contexto amplo, rico, fecundo e permeado de múltiplas linguagens, as quais automaticamente as levarão à linguagem escrita. Isso me leva a afirmar que fazer um gesto, um desenho, uma pintura, uma gravura, um movimento, uma dança, uma escultura, uma maquete, brincar de faz-de-conta, decifrar rótulos, seriar códigos, ouvir histórias, elaborar listas, discutir impressões de notícias de jornal, elaborar cartas, trabalhar com receitas, realizar visitas a bancos, museus e supermercados, conviver e interagir com gibis, livros, poesias, parlendas, ouvir música, enfim, a interação com as diferentes linguagens é essencial e antecede as formas superiores da linguagem escrita.
O desenvolvimento de tais atividades esclarecerá às crianças a importância e o funcionamento da escrita em nossa sociedade, desenvolvendo capacidades necessárias para a sua apropriação. Isso poderá motivá-las a querer conhecer mais, querer aprender a ler e escrever de maneira prazerosa e satisfatória. O papel da escola intensifica-se, enquanto a prática de ensinar complexifica-se.
Ressalto a importância de as crianças conviverem com a leitura e a escrita cotidianamente, pois assim a prática pedagógica do professor se voltará para a função social da escrita e da leitura. Pode-se afirmar que, antes de se ensinar a ler e escrever, é preciso desenvolver na criança tal necessidade. Concordo com Mello (2005) quanto ao fato de que só assim o leitor será capaz de ler ideias, e não apenas palavras compostas de sílabas em um texto. Da mesma forma, ao escrever, registrará ideias, e não apenas grafará palavras.
Nesse caso, é preciso avançar no ensino da escrita, que geralmente acontece na escola por meio de exercícios de repetições, preenchimento de letras, treino das sílabas, junção de vogais, ou seja, tarefas de treino de escrita de letras, sílabas e palavras que não constituem atividades de expressão.
A leitura e a escrita fazem parte da linguagem do ser humano e, ao serem desenvolvidas, é importante que estejam correlacionada às outras linguagens. Tomemos a oralidade como exemplo. Ela envolve as pessoas e, sendo compreendida em uma comunicação recíproca, pode provocar o processo de alfabetização. Digo isso pelo fato de a escrita ser uma representação da fala, que, por sua vez, representa a realidade. A oralidade é uma linguagem fundamental nas relações entre professores e crianças e das crianças entre si, porém é ainda pouco discutida na educação infantil. Nessa etapa, tanto o movimento quanto as expressões verbais e não verbais estão fomentando simultaneamente o desenvolvimento infantil.
A linguagem oral precisa provocar a expressão das crianças e, para tal desenvolvimento, a criança precisa conviver, participar e falar. Para que essa tríade seja estabelecida, cabe ao professor motivar a participação ativa das crianças, vendo-as como sujeitos capazes de aprender e de se desenvolver. A fala não é representada apenas pela voz, mas de diversas maneiras, e os profissionais que atuam nos contextos educativos precisam fazer as interpretações. Paralelamente à linguagem da oralidade caminha a educação da sensibilidade, da percepção, da concentração e da atenção. Ouvir ou falar não é tão fácil como parece. É nesse contexto de complexidades que quero adentrar.
O desenvolvimento da oralidade contribui para que o professor se aproxime das crianças e para que essa aproximação possibilite ouvi-las atentamente. Ao fazer isso, o professor terá a oportunidade de conhecer e interpretar o mundo social e cultural das crianças, ou seja, terá a chance de desvendar o que elas pensam, sentem, falam e fazem. Essa prática - meio de desencadear o pensar e agir pedagógicos - permite ao professor ler a realidade que circunscreve as ações infantis, o que, por conseguinte, favorece-lhe a promoção de atividades significativas que envolvam as crianças em sua realização.
Discordo por completo da didatização das atividades e do modelo tradicional burguês de seleção de conhecimentos. Chamo atenção para a importância de elaborar atividades produtivas, interligadas às experiências culturais e sociais das crianças. Nesse sentido, cito Vygotsky (1998), que considera primordial o trabalho no campo educacional quando proporciona o desenvolvimento do conhecimento científico, porém alerta que este deve ser construído a partir dos conceitos trazidos pelas crianças, pois possibilita o processo de elaboração conceitual. Portanto, a análise das experiências culturais e sociais das crianças é ponto de partida, e não de chegada. Isso permite que elas saiam de sua indiferenciação inicial para se apropriar de novos conceitos.
Interligar a oralidade e as experiências culturais das crianças aos processos de alfabetização parece-me uma possibilidade positiva para romper com o temor da própria alfabetização, a qual historicamente acompanha a vida das crianças e as práticas dos professores. Mello (2005) salienta que, sem exercitar a expressão, o escrever fica cada vez mais mecânico: sem ter o que dizer, a criança não tem por que escrever. Nesse sentido, o processo de alfabetização começa muito antes da primeira vez em que o professor coloca um lápis na mão da criança e mostra-lhe como formar letras. Rompemos, assim, com a ideia de que a criança só deve escrever quando o professor mandar. No contexto da escola infantil, isso provoca um efeito positivo nos processos de alfabetização, pois a aquisição do código escrito passa a ser compreendida como atividade de expressão, comunicação e registro de experiências.
É preciso pensar a alfabetização para além de uma gama infindável de distorções, arbitrariedades, interpretações que enfatizam a técnica em detrimento de sua função social e cultural. Isso exige que conectemos a escrita ao mundo real da criança, não separando algo que está social e culturalmente interligado. Por isso, vejo a oralidade a e alfabetização de maneira indissociável e complementar: duas linguagens humanas que formam uma só.
- Altino José Martins Filho é membro fundador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Infantil GEDIN/UDESC.
REFERÊNCIAS
- MELLO, S.A.O processo de aquisição da escrita na educação infantil: contribuições de Vygotsky. In: FARIA, A.L.G.; MELLO, S.A. (orgs.). O mundo da escrita no universo da pequena infância. Campinas, SP: Autores Associados, 2005.VYGOTSKY, L.S.; LURIA, A.R.; LEONTIEV, A.N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone/Editora da USP, 1998.
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gosto muito deste artigo
ResponderExcluirmarcia
Adoro ler os artigos de Altino Martins.
ResponderExcluirA concepção de educação infantil dele é muito transformadora.
As crianças agradecem por ter um profissional atuando na educação delas que pensa e faz o cotidiano desta forma.
Valeu.